Enxurrada - Getúlio Ribeiro, Emílio Sene e Cleo Ferreira
Na cidade de Uberlândia, o córrego São Pedro é canalizado para dar lugar a uma grande avenida. Ciclos de chuvas com fortes enchentes passam a assolar periodicamente o local.
Em meio a tudo, pessoas navegam suas próprias vidas sem notar a imensa correnteza que as arrasta e o turbilhão de acontecimentos que as engolfam.
Isso até que a água suba, fazendo restar nada mais que a perplexidade diante da descomunal força da natureza, que, desconsiderada, muitos teimam em não reconhecer.
ENXURRADA apresenta um amplo e cativante elenco de personagens, vivendo uma sensível e complexa trama multitemporal em três cores, sombreada a todo tempo por escuras nuvens de chuva, temporais e todas as dificuldades que as periódicas tragédias urbanas acarretam à vida humana.
Mas como diz Raul Seixas, “... a chuva é minha amiga, e eu não vou me resfriar...”, pois sabemos que não é contra ela, ou a água, que devemos praguejar ou temer, não mesmo.
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Título: Enxurrada
Roteiro: Getúlio Ribeiro
Ilustrações: Emílio Sene
Aquarela: Cleo Ferreira
Capa: Emílio Sene
Revisão: Cleusa Bernardes
Projeto Gráfico: Thiago Carvalho
Editor: Robisson Sete
www.editorasubsolo.com.br
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Conselho Editorial:
Cleusa Bernardes, João Carlos Biella, Robisson Sete, Sergio Bento, Thiago Carvalho
Catalogação na publicação
Elaborada por Bibliotecária Janaina Ramos – CRB-8/9166
R484e
Ribeiro, Getúlio
Enxurrada / Getúlio Ribeiro; Ilustrações de Emílio Sene. - Uberlândia/MG: Subsolo, 2024.
112 p., il.; 16 x 23 cm
ISBN 978-65-88075-57-9
1. Histórias em quadrinhos. 2. Uberlândia/MG - História. I. Ribeiro, Getúlio.
II. Sene, Emílio (Ilustrador). III. Título.
CDD 741.5
Índice para catálogo sistemático
I. Histórias em quadrinhos
Contatos
[email protected] / @getulio_escreve
[email protected] / @emiliosene
[email protected] / @cleo_ferreira_art
“Sou um córrego feito gota a gota por ancestrais?
Inclusive os que encontrarei à frente,
os que ainda virão mas que já são?”
Allan da Rosa
Este é um livro sobre vidas equiparáveis a água. Vidas que nascem, flfluem, jorram, turvam-se, agitam-se, escoam pelo ralo e entram pelo cano. E ainda com tanto desvio, regressam assim que podem aos mesmos cursos de outrora.
Tal premissa se esgotaria com facilidade num irresistível jogo de metáforas a tratar estritamente de nós mesmos, não fosse o inclemente ciclo de catástrofes relacionadas à água que deram motivo à sua elaboração.
Como qualquer outra cidade, Uberlândia, importante núcleo mineiro com população em torno de setecentas mil pessoas, detém seus próprios cursos d’água. A povoação do local se estruturara em suma tendo como eixo a conflfluência de dois deles: o rio Uberabinha e um de seus principais aflfluentes, o ribeirão São Pedro. Artéria central da cidade, o córrego São Pedro terminara canalizado em toda sua extensão no início da década de 1980 para ceder lugar à construção da ampla avenida Rondon Pacheco.
Em 1986 sobreveio a tragédia prevista em laudos especializados e anunciada pela imprensa local, quando um temporal com cerca de duas horas de duração despejou na avenida uma correnteza à velocidade de cem quilômetros por hora, gerando caos e destruição e ceifando vidas. Hoje, adentramos a década de 2020 com um acúmulo, ano após ano, de sucessivas inserções nos noticiários nacionais em razão do mesmo fenômeno. Faz pensar no córrego São Pedro, e no triste vale hoje forrado de concreto a circundá-lo, da maneira que sempre fora: curso d’água. E na suntuosa avenida Rondon, reduzida à qualidade de efêmero sonho de asfalto, levada pela torrente.
Neste cenário catastrófifico e intertemporal, histórias se movimentam para compor o enredo da Enxurrada. Nelas, excluindo as referências à enchente de 1986 e um punhado de outras menções a episódios e fifiguras factíveis espalhadas ao longo da narrativa, todos os personagens e ocorrências são de ordem fificcional.
Em contrapartida derivam em sua integridade de um conjunto de vivências e estudos que me são muito caros e íntimos, e englobam experiências e pessoas – incluindo a minha própria – que são parte de minha história individual e, de forma abrangente, da história da cidade. O que certamente justififica o apego concedido sem distinção a todos os protagonistas na trama, afeição também compartilhada com alegria por meus parceiros Emílio Sene e Cleo Ferreira.
As limitações impostas pela execução do projeto em plena pandemia do novo coronavírus tiveram como impacto a ausência de consultas orais durante o processo, à qual se intentou suprir com extensa pesquisa bibliográfifica e documental.
Em alguns casos, a escassez de fontes documentais requer mais da imaginação e, por consequência, da fificção: em particular no que se refere ao
bairro Patrimônio, reduto de histórias e sujeitos invisibilizados pelas narrativas ofificiais. Procurou-se evidenciar a correlação entre a construção da avenida Rondon e a pressão exercida pela especulação imobiliária crescente sobre os moradores do bairro, em articulação com outras mazelas como a penetração das drogas na comunidade impactando sobretudo a população mais jovem.
Ao mesmo tempo, enfatizou-se a força da ancestralidade, da religiosidade e da musicalidade de seu povo, abrindo seus próprios cursos e canais em meio à urbe erguida sectariamente sobre profundos alicerces racistas e elitistas.
O que transparece são as feridas expostas de uma cidade que renega suas águas enquanto tem batizada sua principal praça com o nome de um feminicida. A enxurrada não é complacente e a tudo arrasta, impiedosa. Nas entrelinhas da narrativa fifigura a magnitude do problema socioambiental que ora se projeta: cujo curso se ignora, como se ignoram as águas, vistas de relance em seus cursos
velados, encobertos e tapados, por uma cidade mergulhada em seus próprios sonhos e rotinas líquidas, lutas correntes e amores represados. Isso até que a água suba, fazendo restar nada mais que a perplexidade diante de uma força desproporcional, a qual teimamos em não reconhecer.
A teimosia deste livro está em tentar compreender que nossa sobrevivência na cidade – ou nossa luta por ela – é em verdade proporcional à de nossas águas.
Verão de 2023
Getúlio Ribeiro